UMA HISTORIA DA HISTÓRIA DE SALVADOR EM SEUS 470 ANOS
Autora: Solange Valladão
Arquiteta urbanista, doutoranda em Arquitetura, Conservação e Restauro
Foto: Solange Valladão. Praça Castro Alves, 2017
2018 foi marcado por mudanças significativas em parte do contexto político-econômico que atua sobre os processos que mediam, reformulam, constituem e distinguem a segregação urbana no centro histórico de Salvador. A energia empregada nas relações de disputa pelo patrimônio urbano deste espaço – e de outras frentes de disputa – foram, em parte, capturadas pela mobilização nas eleições em outubro deste ano para os cargos dos poderes executivo e legislativo nacional e estaduais. Aqui, no estado e no município, a continuidade dos representantes reeleitos, não trouxe alterações de linha política, mas intensificou as políticas públicas já iniciadas. Apesar de representarem diferentes partidos, articulações políticas e de um histórico de rivalidade, entre as gestões atuais desses dois níveis de governo não há diferenças significativas quando as políticas para o centro histórico de Salvador. Passado os momentos iniciais de rearticulação administrativa para o novo período de gestão, o que vem se afirmando é a apropriação – cada vez mais estratégica – do Centro Histórico e do Centro Antigo como capital político e econômico, como dispositivo de patrimônio.
Hoje, 29 de março, se completa 470 anos de fundação de cidade. Dentro de uma certa tradição política, datas assim, com números redondos, de fechamento de mais uma década, dão mais rebuscamento aos eventos e ações que a festejam, e aos discursos que os anunciam. Deste modo foi o discurso do prefeito Antonio Carlos Peixoto de Magalhães Neto1, no dia 04 de fevereiro, na abertura dos trabalhos da Câmera Municipal de Salvador para este ano.
Vindo de uma tradição familiar na política (neto do ex-prefeito e ex-governador Antônio Carlos Magalhães), seu discurso, de certo modo, fez referência a este passado através de expressões, citações e no perfil das ações anunciadas. Em seu discurso aparecem expressões como \”Primeira Capital do Brasil\” e \”Cidade da Bahia\” para se referir a Salvador. Hoje em desuso, essas eram expressões comuns na imprensa desde o século XVIII até meados do século XX, especialmente a segunda2. São memórias expressivas desse período. A primeira ocorre depois que a capital do Brasil foi transferida para o Rio de Janeiro em 1763 e, desde então, reverencia – de modo entre ressentido e saudoso – um status que Salvador perdeu.
Em referência mais direta à trajetória de sua família na política, o prefeito, parafraseando seu avô3, usa a seguinte expressão \”Salvador constrói seu futuro sem esquecer de cuidar de seu majestoso passado\”. Esta expressão surge logo após o anúncio da \”revitalização\” dos arcos da Ladeira da Conceição, que é feito da seguinte forma:
Aproveito para anunciar em primeira mão nesta Casa que a prefeitura vai executar com recursos próprios os projetos elaborados pelo IPHAN para a restauração do Elevador do Taboão e a revitalização dos arcos da Ladeira da Montanha e das muralhas do Frontispício de Salvador. Serão investimentos da ordem de R$ 21 milhões (Da Redação, CORREIO, 2019).
No dia 07 de fevereiro, os Artífices que ocupam os arcos fizeram uma postagem em sua página na rede social Facebook com o seguinte título (em caixa alta): \”NOTA PÚBLICA SOBRE A DECLARAÇÃO DO PREFEITO ACERCA DA REVITALIZAÇÃO DOS ARCOS DA LADEIRA DA CONCEIÇÃO\”. Datada de 05 de fevereiro e assinada por \”Artífices da Ladeira da Conceição da Praia\”, a nota começa com a seguinte declaração:
Nós, os Artífices da Ladeira da Conceição da Praia, fomos … surpreendidos na tarde de ontem, dia 04 de fevereiro de 2019, com as notícias que anunciavam a \”revitalização dos arcos da ladeira da Conceição\”. Em discurso na câmara dos vereadores, o Prefeito ACM Neto prometeu executar com recursos próprios o projeto de reforma elaborados pelo IPHAN. Mais uma vez, as informações sobre o destino dos nossos espaços de trabalho e das nossas vidas chegam-nos através da imprensa, sem diálogo ou consulta. Não sabemos qual revitalização será empregada aos arcos pela Prefeitura, quando somos nós que há décadas conservamos e damos vida a essas construções. (ARTÍFICES DA LADEIRA DA CONCEIÇÃO DA PRAIA, 2019)
Nesta Nota eles relatam parte dos esforços que vêm empreendendo para permanecerem no local, desde quando foi anunciado pelo IPHAN o projeto de reforma dos arcos, já em processo de licitação (edital de Licitação N. 02/2014-UASG 343007, publicado em 26/02/2014), sem que eles soubessem. A primeira notícia que surge sobre a declaração do prefeito é na página na internet do jornal CORREIO4, publicada em 04/02/2019, às 12:06h e atualizada às 12:29h, ou seja, poucas horas depois do discurso do prefeito na Câmera de Vereadores, que ocorreu na manhã desse dia.
No dia seguinte, 05/02, a notícia volta a aparecer neste jornal5 em uma matéria com o título \”Prefeitura anuncia reformas de novas áreas no Centro Histórico de Salvador\”. A foto que abre a matéria mostra os arcos da ladeira da Conceição da Praia, e tem como título \”Arcos da Montanha são tombados pelo Iphan6: projeto de revitalização foi doado ao município\”. A notícia se refere a divulgação do IPHAN sobre o projeto (em 2014), para dizer que os projetos foram anunciados e que, \”As obras, porém, não saíram do papel\” (BORGES, T; VIGNÉ, J., 2019). Um elemento novo é que os artífices são entrevistados para falarem sobre o projeto. Além disso, aqueles que são donos do negócio em que trabalham, são tratados pelo título de \”proprietário(a)\” dos arcos.
A matéria diz que \”Nas últimas décadas, a manutenção dos Arcos da Montanha foi assumida pelos próprios ocupantes.\” Três deles são entrevistados, destacando-se a marmorista Simone Venâncio (cujo nome aparece equivocado como \”Simone Veloso\”) e o ferreiro e serralheiro Edmilson Rodrigues, que são lideranças reconhecidas no local. Ambos falam da preocupação em continuar trabalhando durante as intervenções. Simone diz na matéria que \”na época [2014], o que a gente queria é que fosse feito em duas etapas. Metade dos arcos seria reformada em uma etapa e a outra metade na segunda etapa\” (BORGES, T; VIGNÉ, J., 2019).
Se no discurso do prefeito há a memória dos \”tempos áureos\” do que é usualmente considerado como as fases de apogeu da cidade nos séculos passados, no discurso dos Artífices há a memória dos \”trabalhadores negros de ofícios tradicionais, que transmitem seus conhecimentos no ensino prático de mestres e aprendizes\” e que estes são os \”herdeiros das formas de fazer e das práticas dos trabalhadores de ancestralidade africana na Bahia\” mas que hoje \”seguem lutando pelo direito a permanecer nos seus territórios de identidade\”.
Entre as propostas apresentadas na matéria do dia 05/02, há uma do publicitário Nizan Guanaes que, durante o evento Salvador Creativity and Media – Scream Festival7 (ocorrido na cidade entre 23 e 24 de novembro de 2018), sugeriu a implantação \”de um bonde ligando o Mercado Modelo à Praça da Sé\”. Esta sugestão foi transformada em projeto pelo vereador Tiago Correia (PSDB) que já o encaminhou para análise na Câmera de Vereadores. Segundo ele:
Quando a gente vai estudar o papel dos bondes em capitais turísticas, a exemplo de Lisboa, Amsterdam, entre outras cidades, verifica que realmente a estrutura passa a ser uma atração turística importante para a cidade. (BORGES, T; VIGNÉ, J., 2019)
A relação dos bondes com o turismo é trazida para a realidade de Salvador de forma descontextualizada, repetindo o hábito de importação de modelos urbanos/turísticos de cidades da Europa ou da América do Norte, sem uma avaliação mais crítica a aprofundada sobre as duas realidades. As linhas de bonde em Lisboa, embora hoje reduzidas, não foram descontinuadas, funcionam desde sua implantação em 1876 e operam com alguns bondes antigos que estão em funcionamento há 80 anos, o que faz dos bondes lá uma presença viva da história da cidade8. Em Salvador os bondes foram implantados em meados do século XIX e saíram de linha na década de 1960 quando foram gradativamente substituídos pelos ônibus, que eram a modernidade do momento, desejada pela elite político-econômica. Como vimos na luta enfrentada hoje pelos dos Artífices, esta elite parece ainda não ter uma visão clara dos diversos elementos que constituem a história viva da cidade e que, juntos e misturados – não segregados – mantêm, constituem e renovam seu patrimônio – material e imaterial – a serem preservados para o futuro.
Nas perspectivas para o futuro da cidade, a praça Castro Alves e seu entorno voltam a ser o centro das atenções. De modo não desejado este ensaio mostra o reencontro dos Artífices com novas emergências de luta para permanecerem no lugar, para que não aconteça com eles o que aconteceu com os barraqueiros da Feira do Couro – projetos, promessas, obras e expulsão da área. A marca da segregação urbana e social imposta pelo portal de Santa Luzia (portal de entrada da cidade no século XVI, onde hoje é a praça Castro Alves) ainda mostra sua capacidade de se reinventar no tempo e no espaço, e de surpreender com seu discurso voltado para um futuro, sempre moderno, sempre omisso.
Notas:
1A íntegra do discurso foi publicado na matéria \”Prefeito ACM Neto anuncia reforma dos Arcos da Ladeira da Montanha\”, assinada \”Da Redação\” e publicada na página na internet do jornal CORREIO em: 04/02/2019. Disponível em: . Acesso em: 05/02/2019
2A ocorrência dessas expressões pode ser verificada através de pesquisa online na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, no acervo disponível de jornais da Bahia no período.
3Quando foi governador do Estado no período entre 1971 e 1975, o slogan de Antônio Carlos Magalhães era \”Aqui se constrói o futuro sem destruir o passado\”.
4Fundado em 1978, o jornal CORREIO é parte do conglomerado empresarial da REDE BAHIA, que foi iniciado pelo político baiano Antônio Carlos Magalhães com a fundação em 1975 da construtora Santa Helena. Fonte: Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Rede_Bahia)
5BORGES, T; VIGNÉ, J. Prefeitura anuncia reformas de novas áreas no Centro Histórico de Salvador. CORREIO, Salvador, 05/02/2019. Disponível em: . Acesso em: 05/02/2019.
6Os arcos da ladeira da Conceição que sustentam a ladeira da Montanha não são tombados individualmente pelo IPHAN. No registo de bens tombados desse órgão, eles estão contidos dentro da área do \”Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico Centro Histórico da Cidade de Salvador\”, tombado em 19/07/1984, Proteção Legal: Tombamento Federal – Processo nº 1093-T-83. Embora haja o tombamento do \”Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico: Logradouros no Subdistrito da Conceição da Praia\”, Proteção Legal: Tombamento Federal – Processo nº 464-T-52, este é restrito aos seguintes logradouros: praça Marcílio Dias; rua Manoel Vitorino; trecho da rua Visconde de Mauá; rua Dionísio Martins; trecho da rua Sodré; rua Macedo Costa. Fonte: Sistema de Informações do Patrimônio Cultural da Bahia (SIPAC). Disponível em:. Acesso em: 20/02/2019.
7Este Festival reuniu diversos profissionais ligados a área da Indústria Criativa. Além do publicitário Nizan Guanaes, esteve presente também o empresário Antônio Mazzafera, proprietário da Fera Empreendimentos responsável pelo Fera Palace Hotel. As palestras foram realizadas em três lugares: Fera Palace Hotel, Espaço Cultural da Barroquinha e Teatro Gregório de Matos. Todos são espaços que integram o chamado \”Corredor Cultural da Barroquinha\” objeto do Edital Nº 02/2018 do Programa de Incentivo ao Desenvolvimento Sustentável e Inovação (PIDI). 8Fonte: Matéria publicada no site \”Vou na Janela\” especializado em viagens de turismo, com o título \”Uma viagem nos tradicionais dos bondes de Lisboa\”. Publicado em: 03/12/2016. Disponível em: . Acesso em: 20/02/2019
Referências:
ARTÍFICES DA LADEIRA DA CONCEIÇÃO. A Ameaça de remoção forçada dos trabalhadores da ladeira da Conceição continua. Publicado em: 04/12/2014, na rede social Facebook. Disponível em: . Acesso em: 17/06/2015. ______. Nota Pública sobre a declaração do prefeito acerca da revitalização dos arcos da ladeira da Conceição. Publicado em 07/02/2019. Disponível em:. Acesso em: 07/02/2019.
Posts recentes
Ver tudoUma reflexão sobre as ações mais recentes em Salvador e no Brasil Texto e foto: Solange Valladão Atualizado em: set 2021 RESUMO Este...
Comments