Portal das Reformas
O texto a seguir é a última parte da minha dissertação de mestrado concluída em 2017. Trago ele aqui, por que o tema das reformas no Centro Histórico de Salvador (CHS) é muito central hoje na disputa que segue por ocupação e uso do patrimônio urbano deste espaço.
Este texto contrapõe a racionalidade popular presente no cotidiano do que ainda é o CHS hoje, com a aparente irracionalidade colonial que marca nosso modo de fazer cidade, não esquecendo que nesse modo, há uma forte racionalidade baseada na construção de uma sociedade estratificada e na manutenção de privilégios usurpados.
Foto: Solange Valladão. Praça Castro Alves, 2017.
Portal das Reformas
Nota não assinada, publicada no jornal baiano “O IMPARCIAL” em 17 de outubro de 1935.
PLANO URBANISTA
Ha pouco tempo, em interessante palestra no Rotary Club, um dos clínicos de nomeada em nossa capital, alludiu à necessidade de uma obra de prophylaxia nas habitações da capital, vindo o particular em auxillio da Saude Publica para o exito de um objectivo de tão grande alcance, numa cidade, como a metropole bahiana, em que o numero de casas velhas, construidas sem as exigencias da hygiene, geralmente escuras e sem ventilação sufficiente, é avultado.
São geralmente residencias presas umas às outras, em condições pessimas quanto à salubridade.
[…] Adoptado um plano de urbanismo traçado com as attenções e cuidados indispensaveis, por technicos e hygienistas, a Bahia mudará, aos poucos, seu feios aspecto de cidade colonial, melhorando, afinal, as suas condições de hygiene e salubridade.
Nota não assinada, publicada no jornal baiano “O IMPARCIAL” em 01 de novembro de 1935.
Um feio aspecto desapparece
A \”Semana de Urbanismo\” ha pouco levada a affeito entre nós, se não chegou a conclusões fantásticas, ao menos nos efferece as possibilidades de breve melhora […].
Embora tenha a Bahia a respeitavem somma de 400 annos […], nem po isso póde ou deve ficar com a mesma physionomia revelhusca de quem se desiludiu definitivamente. É preciso reagir contra a idade e contra os vicios originaes da sua constituição.
Essas notícias foram publicadas no jornal O IMPACIAL em dois momentos: a primeira poucos dias antes e a segunda uma semana depois da “Semana de Urbanismo” que aconteceu em Salvador entre os dias 20 e 27 de outubro de 1935. Nelas estão as queixas que se fixaram no imaginário das pessoas que, por certo, possuíam condições melhores de moradia, que não era em casas “presas uma às outras” e nem perfaziam com a ocupação irregular, o traçado que é próprio das “cidades naturais”. Nesta época as ruas estreitas e imóveis antigos, era um mal a ser superado, aos quais também se atribuía o aspecto “feio” e “desalinhado” das ruas, por seu “estilo colonial”. Segunda a época, este deveria ser superado pelo “estilo moderno” de fazer arquitetura e urbanismo. Estilo esse que pautou as discussões da Semana de Urbanismo, para onde convergeu a ideia, já instalada em grande parte do imaginário popular e das elites, de que era naqueles aspectos coloniais, que estavam “os vícios originaes da sua constituição.”
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O período histórico da rua Chile, a que os saudosistas de hoje se referem como a época em que “as coisas eram melhores”, está situado aproximadamente entre os anos 1920 e 1960. Neste tipo de discurso expressões como “tempos áureos”, “época de glamour” ou de “antiga glória” (GUANAES, 2015), busca-se criar em nosso imaginário, o desejo por algo que o expresse – ainda que novo e forjado como antigo. Para aqueles que aderem a este saudosismo, deveriam ser restauradas as condições de se voltar a usar essas palavras para se referir ao centro histórico, ou seja: o tempo em que as elites da sociedade ocupavam, usavam, consumiam e circulavam naquele espaço. Este discurso se presta “às mais diversas situações estratégicas” (SANTA’ANNA. 2014, p. 32), neste caso a uma “estratégia de poder”, que é a de retomada do CHS pelas elites, que buscam se beneficiar de forma crescente das políticas que foram traçadas e pactuadas com as mesmas desde a década de 80, quando houve a primeira grande campanha publicitária para vender a ideia da revitalização do CHS após o tombamento pela UNESCO em 1985.
Neste período o Pelourinho, já nomeado patrimônio da humanidade pela UNESCO, torna-se objeto da visibilidade política do governo municipal, e este desejava que fosse também dos investidores. Já citamos o texto do publicitário Nizan Guanaes, publicado no jornal Folha de São Paulo, quando foi comprado o Palace Hotel pelo grupo Fera Empreendimentos. Em outro trecho deste mesmo texto, ele fala desse tempo: “Nos anos 1980, convencemos o então poderoso presidente fundador da Sony, Akio Morita, a entrar na campanha pela revitalização do Pelourinho” (GUANAES, 2015).
Contextualizando este período, a articulação a que Guanaes se refere, era parte de uma estratégia política para o CHS empreendida pelo então prefeito Mário Kertész1, que já havia realizado algumas obras no local, com recursos da prefeitura, pelo “Programa Especial de Recuperação dos Sítios Históricos” (PERSH). Com esta campanha, a prefeitura visava a arrecadação de recursos para o projeto “Parque Histórico do Pelourinho” (PHP), criado em 04/09/1987 e que possuía administração própria2. Com essa autonomia foi criado um plano de estímulo para investimentos, transformando a área que correspondia ao Parque Histórico em uma “zona franca” como descrito no artigo “Políticas Culturais de Salvador na Gestão Mário Kertész (1986 A 1989)”, de Juliana B. Köpp e Mariana L. Albinati (2005)3:
Com esta administração específica [autônoma] o Parque passou operar para revitalização do centro de forma mais direta através de projetos como a formulação da “zona franca” municipal, ao isentar todas as residências e casas comerciais situadas dentro do limite do Parque do pagamento dos impostos e taxas municipais. Em contrapartida, a Prefeitura prometeu aplicar multas e taxações progressivas nos imóveis arruinados por descaso dos proprietários. (ALBINATTI; KÖPP, 2005, p. 20)
A partir da década de 1960, o poder público começa a vincular o turismo à sua estrutura administrativa criando empresas de economia mista. No governo Luiz viana Filho (de 1967 a 1971, pelo partido ARENA), foi criada pela Lei N.º 2.563/1968, a empresa “Hotéis de turismo do Estado da Bahia”, restruturada em 1973 pelo Decreto N.º 22.317/1973 para Empresa de Turismo da Bahia S.A. – Bahiatursa. Em 2014, no governo de Rui Costa (atual governador) esta se tornou Superintendência de Fomento ao Turismo do Estado da Bahia – Bahiatursa, mas passando a ser um órgão da administração direta do Estado, sendo extinta a sociedade mista4. No nível municipal em 1986, no governo Mário Kertész, foi criada a Empresa de Turismo de Salvador S.A. – EMTURSA, sociedade de economia mista, pertencente a administração indireta, hoje chamada SALTUR, mas com o mesmo status jurídico.
Também da década 1960, surgiu o modelo de incentivos fiscais como a política nacional para o desenvolvimento do Nordeste, que foi posteriormente adotado por todo poder público como fórmula para incrementos mais rápidos na macro e microeconomia. Desde então este modelo tem marcado as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico em Salvador. Além da “zona franca” os recursos para o PHP (1987), deveriam ser oriundos do “Fundo Municipal para recuperação Física de Sítios Históricos”, e foi para alimentar este fundo que se lançou uma campanha publicitária, nacional e internacional, com o slogan: “Pelourinho Patrimônio da Humanidade. Todo mundo tem que preservar”, que:
[…] contou com uma produção audiovisual que visava convidar iniciativa privada e pública a investir na recuperação do Centro Histórico. Peças publicitárias foram veiculadas em diversos jornais e revistas nacionais. A campanha esteve presente no carnaval e teve o incentivo de figuras ilustres como os cantores Chico Buarque, Paul Simon, Julio Iglesias e o presidente mundial da Sony, Akio Murita. (ALBINATTI; KÖPP, 2005, p. 21)
Antes de Mário Kertész, outros dois prefeitos realizaram projetos que impactaram nas características arquitetônicas, urbanísticas, sociais e econômicas do CHS. Durval Neves da Rocha, prefeito de 1938 a 1942 e Antônio Carlos Magalhães, prefeito de 1967 a 1970. A forte exploração publicitária dos projetos de reforma urbana no centro da cidade, foi uma característica marcante desses três prefeitos: Rocha, Magalhães e Kertész.
Neves da Rocha, foi pioneiro no uso de filmes publicitários para divulgar as obras de seu governo, mas também usava para este fim periódicos de circulação nacional. Um exemplo é a matéria de uma página inteira sobre o assunto que saiuno jornal carioca “A batalha” em edição de 13 de abril de 1939, ilustrada com fotos de obras na Barra, na rua do Fabrício, rua do Acupe a na Água Brusca, além da curiosa foto onde se lê o título “Pose oratória do prefeito Neves da Rocha”. A manchete foi a seguinte:
O primeiro anniversário de uma administração modelar. A cidade do Salvador, sob a orientação proveitosa de Neves da Rocha – um prefeito capaz de realizações modernas em uma cidade colonial – A Bahia de hontem e de hoje – Tudo alli é conservado: ao lado dos templos barrôcos, as avenidas do seculo XX. (A Batalha, 1939, p. 04)
A matéria termina com a seguinte frase:
A BATALHA, no seu primeiro anniversario de seu governo, presta-lhe esta homenagem, sem outro sentido senão o de mostrar ao Brasil que os homens do norte continuam a ser modelares e capazes. (A Batalha, 1939, p. 04)
O mote publicitário da época, era a crescente modificação das características associadas ao período colonial que até a década de 1960, era considerada como o velho que deveria ser modernizado. As reformas de então eram baseadas no chamado “urbanismo demolidor”. O filme “Remodelação da cidade de Salvador” de 1940 de Ruy Galvão, feito sob encomenda para divulgar as obras da prefeitura, mostra o alargamento da Ladeira da Praça e do Taboão. A narração no filme sobre estas obras, oferece a dimensão do que era o entendimento de modernidade da época e qual era o projeto político que legitimava as reformas urbanas. Não é à toa que ficou famosa a expressão “as picaretas do progresso”, usada para se referir às demolições que ocorriam pelo centro da cidade para dar lugar ao moderno:
Em alguns pontos, a feição foi completamente modificada. A rua Visconde do Rio Branco, antiga Ladeira da Praça, passará a ter largura suficiente para escoar todo o tráfego para a Baixa dos Sapateiros, as primeiras desapropriações já foram feitas, e o princípio da rua já se acha rasgado pelo traçado moderno. As ruas Thomé de Souza e José Gonçalves, eram da largura da antiga Ladeira da Praça, feitas as desapropriações necessárias, foi promovido seu alargamento, o que está sendo realizado segundo o traçado do plano da remodelação da cidade. Obedecendo ao novo alinhamento, erguem-se nessas ruas modernos edifícios de muitos pavimentos, dando a esta rua secular, outra feição de progresso e de modernização. O local da antiga Sé, faz parte do plano de remodelação da cidade. O trecho de seguimento da rua da Misericórdia, já se acha calçado e no alinhamento definitivo.
Até nos antiquíssimos pardieiros do Taboão, o velhíssimo o recanto da Bahia de nossos ancestrais, foram alvo das picaretas do progresso. Velhos casarões foram e estão sendo demolidos, ficando para trás, o novo traçado de grande largura. O velho Taboão, hoje rua Silva Jardim, é um dos pontos de ligação entre a cidade alta e baixa. O seu alargamento era obra a muito reclamada pelos interesses da cidade. (SALVADOR EM PELÍCULA, 1ª Parte, aos 16min 48s)
Neste período, Neves da Rocha realizou reformas também na rua da Misericórdia e na rua Chile. Considerando que, até a década de 1970, essas eram as principais ruas de Salvador, eram então propícias para dar mais visibilidade às características da modernidade, com as quais se alavancariam de ambições políticas ao propagado desenvolvimento. Mas a modernidade chegou de forma seletiva, pois mantinha a pobreza e a precariedade em suas margens (como na Baixa dos Sapateiros, nas ladeiras e algumas áreas entorno do porto), sob vista grossa ou pela cegueira de ocasião (como já dito aqui), onde crescia a ocupação por famílias mais pobres, pois mesmo sem infraestrutura, eram os únicos espaços viáveis para estas ficarem próximos ao centro, onde ainda concentravam oportunidades de ganho com serviços e vendas em geral e algum emprego.
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Entre as décadas entre 1930 e 1940, o desejo da elite política e econômica em Salvador (difundido via publicidade em filmes, revistas e jornais) era inserir a cidade no contexto nacional de crescente adesão ao “plano geral de urbanização” como política de Estado, disputando o status de cidade moderna, adaptada às novas diretrizes de “embelezamento”, de “desenvolvimento e progresso”, como tanto se repetia na época. A Semana de Urbanismo de 1935, foi um acontecimento chave para essa articulação em Salvador. Mas, segundo Oliveira em sua tese de 2008, sobre a rua Chile entre os anos 1900 e 1940, ainda que na Semana de Urbanismo se buscasse as referências ao que havia de mais moderno no pensamento urbano do momento, na década seguinte as propostas urbanas se aproximam mais de outro momento de transformação urbana da cidade:
Ao longo da década de 30, as indicações da Semana de Urbanismo não passaram do discurso e de contatos para a elaboração de um Plano Diretor para a cidade. O prefeito Durval Neves da Rocha não deixou de efetivar obras, porém, em observação mais apurada nota-se que quase todas essas obras estavam previstas nos projetos seabrista de 1912. (OLIVEIRA, 2008, p. 204)
Foi entre 1912 e 1916, no primeiro governo de José Joaquim Seabra, que aconteceu a primeira grande obra de modernização no centro da cidade que foi a abertura da avenida Sete de Setembro. Inaugurada em 7 de setembro de 1915, a avenida rasgou uma extensa área entre a Praça Castro Alves (centro) e o Porto da Barra (orla), valorizando os terenos desta área de expansão da cidade em direção a orla da Barra e Rio Vermelho, demolindo casas, edifícios e relocando famílias pobres para áreas mais afastadas da cidade, uma vez que essas não podiam negociar com o Estado5nem sua permanência e nem melhores condições para sua relocação.
Nas obras do período na cidade baixa, o efeito foi um pouco diferente pela relação mais direta que esta área possuía com a movimentação econômica da cidade a partir do Porto, que foi progressivamente ampliado por aterros, que criavam novas vias, quadras. O porto foi inaugurado em 1913, mas as obras se estenderam até 1930 (ALMEIDA, 2014, p. 239). Ao mesmo tempo, era promovida uma corrida à estetização das antigas construções e a construção de novas que, seguindo os novos princípios estéticos e de alinhamentos das vias, retificavam a ocupação desordenada e as ruas sinuosas. Esta corrida foi reforçada, por uma fiscalização mais rigorosa dos órgãos públicos (prefeitura e estado) relacionada a problemas como “cubagem mínima, aeração e ventilação dos cômodos, dimensionamento de vãos, instalação de aparelhos sanitários ou impermeabilização do solo” (ALMEIDA, 2014, p. 241).
Nas palestras da Semana de Urbanismo de 1935, predomina um discurso liberal que reforça o caminho, já aberto, para a exploração imobiliária da terra, como aconteceu com a valorização da Orla da Barra e Rio Vermelho, com a abertura da avenida Sete de Setembro. A cidade pobre e sem infraestrutura, parece um ente sem voz que ocupa um espaço a ser higienizado. Ideias de modernidade são anunciadas como máximas, do alto da aclamada superioridade técnica atribuída ostensivamente aos seus engenheiros, arquitetos e médicos, e aos modelos urbanos que estes trouxeram do estrangeiro para inspirar e balizar seus discursos.
A Semana de Urbanismo não deixou de ser um esforço de reflexão crítica e propositiva sobre as questões da cidade, do modo que era possível dar conta naquela época para os engenheiros, médicos e técnicos que, embora fossem formados na escola do pensamento higienista, buscavam ampliar seus horizontes acessando e estudando novos modelos que prometiam uma compreensão mais ampla de urbanismo, ainda que descontextualizada da realidade local – até mesmo por falta de dados elementares como, por exemplo, a base cartográfica da cidade. Mesmo assim alguns encaminhamentos foram feitos para dar prosseguimento ao projeto de modernização e de melhorias da cidade:
Como resultado das discussões, a Prefeitura de Salvador manda representantes para o Congresso de Urbanismo, realizado no Rio de Janeiro, em 1939, e contrata a firma Coimbra Bueno para a elaboração da proposta de um plano urbano para a cidade […] entregue em 29 de maio de 1941 (OLIVEIRA, 2008, p. 204).
No final da década de 1940 e início de década de 1950, dois documentários são produzidos para mostrar as obras realizadas em Salvador: “Veja o Brasil” de Maynard Araújo e “Porto de Salvador” de autor desconhecido. Esses documentários, chamados também de “cines-jornais” eram exibidos nos cinemas de todo Brasil antes das seções, conforme exigido por um decreto de 1932, que buscava incentivar a produção cinematográfica nacional (ALMEIDA, 1999, p. 121). O vídeo que chamado “Rua Chile e Praça Municipal” (2010) trás de uma edição que reúne fragmentos dos dois documentários. Na transcrição abaixo, pode-se ver o teor publicitário dados aos feitos do prefeito e outros pontos que marcam a produção de discurso e do imaginário da época:
Com seus prédios imponentes, Salvador é como uma capital europeia multisecular. Se estamos numa rua como esta [a rua Chile aparece nesta hora] cheia de movimento, de vibração, de dinamismo do século XX, para voltarmos 400 anos atrás, é só atravessar os portais de suas magníficas igrejas e lá estaremos contemplando através dos quadros, esculturas, pinturas, azulejos, os primórdios de nossa vida social […] na cidade alta encontramos o comércio elegante da cidade do Salvador, desde a Praça Municipal e pelas diversas ruas principais como rua Chile, av. Sete de Setembro e várias outras, espalham-se na movimentação própria das grandes capitais, todos aqueles que servem de leitmotivao ritmo dinâmico de um centro de vida ativa, laboriosa e fecunda, como bem atestam os melhoramentos introduzidos. (Rua Chile e Praça Municipal, 2010, aos 6s)
Na gestão do prefeito Antônio Carlos Magalhães, o slogan era “Crescer sem demolir”. A princípio, isso parecia ir de encontro a um entendimento de preservação do antigo centro da cidade. Mas, na verdade, viria a determinar o seu esvaziamento crescente. Em 1971, já governador da Bahia, Magalhães é responsável pelo maior projeto de expansão urbana da cidade – depois de J. J. Seabra. Empreendimento realizado graças a um conjunto articulado de ações impulsionadas pela abertura para venda dos terrenos públicos, através da alienação de bens dominicais, possibilitados pela Lei nº 2181/68, conhecida como Lei da Reforma urbana6. Esta lei foi a primeira grande estratégia de desenvolvimento da cidade, baseada na exploração do solo urbano como mercadoria, abrindo espaço para a setorização do uso e ocupação da cidade, que diversificou os tipos zonas de ocupação existentes e criou outras mais especializadas (do que as que existiam até então), como novo centro comercial na região do Iguatemi (onde foi implantado o shopping center que lhe deu nome, hoje Shopping da Bahia) e o novo Centro Administrativo do Estado da Bahia (CAB), na da av. Paralela, também construído neste governo. Segundo um vídeo da época esta grande expansão urbana é apresentada da seguinte forma:
Salvador levou 4 séculos crescendo para cima e para dentro de si mesmo. Enquanto para os lados, grandes áreas verdes permanecem à espera de serem ocupadas […] 60% da área total do município permanece vazia e inexplorada […] o novo centro administrativo é a resposta do governo Antônio Carlos Magalhães ao desafio do desenvolvimento urbano de Salvador. A resposta do planejamento para problemas tão antigos quanto a própria cidade. (SALVADOR EM PELÍCULA, 3ª Parte, aos 16min 48s)
Quando no governo do Estado, o slogan de Antônio Carlos Magalhães era “Aqui se constrói o futuro sem destruir o passado”. Ele mesmo declara no filme “Centro Administrativo” de Geraldo Machado, feito em 1975, e ainda diz que:
Os portugueses que aqui vieram e fundaram esta cidade e entregaram depois aos brasileiros, todos nós estamos hoje a contemplar o passado, mas já prevendo um futuro radioso para a cidade do Salvador. (SALVADOR EM PELÍCULA, 3ª Parte, aos 23min 39s)
Os portugueses de fato vieram, mas chegaram invadindo o espaço dos povos indígenas e fundaram sua cidade, que não foi entregue aos brasileiros, aos baianos, mas foi tomada por estes em 2 de julho de 1823, data em que se comemora a independência da Bahia do domínio político de Portugal.
Aqui termina uma passagem pelo Portaldas reformas, onde se encontrou a manipulação do imaginário, a propaganda e as frases de efeito voltados para a manipulação de desejos e de memórias, forjadas na publicidade para anunciar projetos e obras realizadas pelo poder público e agora deste em parceria com o poder privado, nas chamadas PPP (Parceria Público-Privado) . Esta articulação midiática opera em nosso imaginário a fixação em ser outro já moderno europeu, americano, carioca, ser Barcelona, ser Nova York e seus distritos comerciais de luxo. Em meio a isso se consolida a entrada do estado no capital imobiliário e vice e versa, deixando a cidade cada vez mais pautada pela elite política e econômica e, portanto, segregada.
Notas:
1Neste período Mário Kertész estava à frente da prefeitura de Salvador (1986 até 1988) tendo sido o primeiro prefeito eleito democraticamente pelo partido PMDB. Antes disso foi nomeado prefeito da cidade pelo partido ARENA (1979 até 1981) pelo então governador Antônio Carlos Magalhães (que foi governador do estado em três períodos: 1971-1975 pelo ARENA; 1979-1983 pelo PDS e 1991-1994 pleo PFL) , de quem era aliado no mesmo partido.
2Parque Histórico do Pelourinho (PHP), criado pelo Decreto n 7.849 de 04/09/1987, era administrado pela Fundação Gregório de Matos (FGM, criada em 1986) e “correspondia a uma poligonal com 30,8ha de superfície, dentro da área tombada pela SPHAN e reconhecida pela UNESCO” (KÖPP; ALBINATI. 2005)
3Artigo: POLÍTICAS CULTURAIS DE SALVADOR NA GESTÃO MÁRIO KERTÉSZ (1986 A 1989) – VERSÃO PRELIMINAR (2005)
4Fonte: BAHIATURSA.Disponível em: . Acesso em 16/05/2017
5Como na época pode fazer a igreja católica, que negociou a derrubada da Igreja de São Pedro Velho, onde hoje é o Largo de São Pedro (Relógio de São Pedro), com a construção de uma outra igreja ao lado da nova avenida na Praça da Piedade. (TEIXEIRA, Coleção História Visual de Salvador, Vol. 09. 2001, p. 24 e 25)
6Lei Nº 2181, de 24 de dezembro de 1968. Autoriza a Alienação de Bens Dominicais e dá outras Providências. Atos que alteram, regulamentam ou revogam este: Decreto Nº 3684/1969 de 29/07/1969; Decreto Nº 4965/1976 de 14/06/1976 e Lei Ordinária Nº 3288/1983 de 14/09/1983 Disponíveis em: . Acesso em: 20/01/2017.
Referências:
ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O cinema brasileiro no Estado Novo: O diálogo com a Itália, Alemanha e URSS. Revista de Sociologia Política, N.º 12. Curitiba. 1999. p. 121-129. Disponível em: . Acesso em: 10/07/2016.
GUANAES, Nizan. A principal artéria do centro histórico e comercial de Salvador renasce: Folha de São Paulo. 28/03/2017. Disponível em: [ . Acesso em: 02/04/2017. Novo link na pasta do Google Drive, Coleção Postal de Santa Luzia .]
História de Salvador em Película (1920 a 1970)1ª Parte. Documentário. Prodcução TVE. Vídeo (30min 11s) som, cor. Salvador. 2016. Disponível em: . Acesso em: 06/07/2016
História de Salvador em Película (1920 a 1970)3ª Parte.Documentário. Prodcução TVE. Vídeo (26min 44s) som, cor. Salvador. 2016. Disponível em: . Acesso em: 06/07/2016
KÖPP, J.; ALBINATI, M. Políticas Culturais de Salvador na gestão Mário Kertész (1986 a 1989), versão preliminar. 2005: Políticas Culturais da Prefeitura Municipal de Salvador 1985-2004. Pesquisa do Centro de Estudos Multidisciplinares da Cultua (CULT). 2005. Disponível em: . Acesso em: 08/07/2016.
OLIVEIRA, Neivalda Freitas de. Rua Chile caminho de sociabilidades, lugar de desejos, expressão de conflitos: 1900 – 1940. 2008, 268 fl. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo. 2008. Disponível em: Acesso em: 12/6/2016
Plano urbanista. O IMPARCIAL, Salvador, Ano XIII, nº 1484, p. 04, 17 de outubro de 1935. Disponível em: . Acesso em: 25/02/2017
Primeiro Aniversário de uma administração modelar. A Batalha. Rio de Janeiro, 13 de abril de 1939. Ano XI, nº. 3.889, p. 04. Disponível em:. Acesso em: 12/07/2016
SANT\’ANNA, Marcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação das áreas urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador: Editora Oiti, 2014.
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