top of page
Solange Valladão

DAQUI NÃO SAIO! AQUI ME SAIO. AQUI ME ARMO…

Atualizado: 4 de ago. de 2022

Centro Histórico de Salvador (Bahia) em disputa.


Este ensaio é uma síntese introdutória à minha pesquisa (em andamento) no doutorado em Arquitetura e Urbanismo (UFBA), na linha de Gestão do Patrimônio Histórico. Ele tem como base as três videoconferências que apresentei como parte das atividades do primeiro quadrimestre de 2022 do Campus Comum (coletivo que participo), como também a aula que apresentei no primeiro semestre de 2022, na disciplina: Patrimônio, Preservação e Globalização, do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), a convite da profª Ana Rivera. Sou muito grata a todas as contribuições que esses encontros trouxeram para a pesquisa e a todos que participaram.


A pesquisa investiga os programas e projetos (ações) voltados para o Centro Histórico de Salvador (CHS), a partir de 2019, quando houve o desmonte do Ministério da Cultura, até 2021 quando foi lançado em Salvador, o edital de concessão do edifício do Palácio Rio Branco, no Centro Histórico, para que a iniciativa privada possa transformá-lo em um hotel de luxo. No lugar do Ministério da Cultura foi criada - em 2019 - a Secretaria Especial da Cultura. Inicialmente vinculada ao Ministério da Cidadania, essa foi transferida no mesmo ano para o Ministério do Turismo.


Com essa mudança na estrutura do governo, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (autarquia responsável pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro), vinculado a essa Secretaria, ficou sob a responsabilidade da pasta do Turismo. O edifício hoje chamado de Palácio Rio Branco, localizado na Praça Municipal no Centro Histórico de Salvador, corresponde à última versão do edifício-sede do primeiro do governo do Brasil colonial, instalado em 1549. Embora tenha sofrido mudanças com ampliações e reformas, e de ter sido duas vezes parcialmente destruído por bombardeios1, o edifício ocupa o mesmo local desde a fundação da cidade.


O objetivo desse trabalho é fazer uma análise crítica dos modelos de empreendimento adotados (que tratam o patrimônio cultural como ativo financeiro) e oferecer, cenários atualizados e mais complexos das disputas em jogo, provocadas direta ou indiretamente por essas ações. Seu intuito é contribuir com a pauta de revisão crítica das estratégias e táticas usadas, pauta esta que tem sido objeto de debates nos movimentos sociais urbanos desde 2013 quando, no Brasil, ocorreram os protestos de rua mais conhecidos como as “Jornadas de Junho”, como também nos encontros que sucederam a esse momento levantando mais alto a bandeira crítica sob o lema do “Direito à cidade”. Nessa análise, considera-se como interface fundamental entre os cenários observados, a progressiva incorporação das redes sociais como ferramenta de articulação, difusão, mobilizações e debates, cujo uso foi intensificado e ampliado nos últimos anos em decorrência da pandemia de Covid-19.


Metodologia:


Os cenários que serão trabalhados, consideram três perspectivas: do poderes públicos, dos poderes financeiros (poderes hegemônicos) e dos poderes populares (contra-hegemônicos e pró-coletivo). Do lado dos poderes hegemônicos (poderes públicos nas três esferas de governo e poderes financeiros dentro e fora do país), pretende-se entender e questionar o modelo de financeirização do patrimônio cultural, por trás da formulação das ações que pretendem direcionar o status socioeconômico e cultural, de uso e ocupação do Centro Histórico de Salvador (CHS) para um mercado exclusivo de alto padrão de consumo de imóveis e de turismo cultural; do lado dos poderes contra-hegemônicos e pró-coletivo (moradores de baixa renda, comércio e serviços populares, movimentos sociais, instituições e entidades públicas de defesa do CHS), pretende-se analisar e aprofundar criticamente as lutas para frear as ações que buscam inviabilizar sua permanência no CHS (com programas de incentivos fiscais como o Revitalizar e o PIDI que serão descritos a seguir) ao tempo que ações violentas são realizadas para coibir sua resistência - despejos, repressão policial, programas e projetos socialmente excludentes.


A contextualização dos acontecimentos é feita através da análise de conjuntura, considerando as articulações e transformações macro-políticas e micropolíticas2, que atuam como pano de fundo dos mesmos ou como agentes de articulação e transformação. É realizada através de um exercício de investigação que observa, sobretudo, a lógica dos poderes em disputa e/ou coexistência.

Segundo o sociólogo Herbert de Souza, há dois modos de leitura dos acontecimentos (na conjuntura política): pela lógica do poder dominante e pela oposição a este, empreendida pelos movimentos populares e demais classes subordinadas. No processo dessa leitura pode-se perceber o jogo segundo o qual, a dinâmica trajetória dessas forças (ou de parte dessas) oscilam em um movimento de troca de posições ou de ascensão e queda, dentro das estruturas de poder (SOUZA, 2014).


No primeiro modo, a leitura se faz no campo de domínio político, acadêmico ou especializado, como forma de produzir arranjos e/ou conduzir a rearranjos sociais para que determinado discurso seja formado sobre a realidade, criando uma versão desta. No segundo parte-se dos “acontecimentos social e historicamente determinados, existentes, concretos” (SOUZA, 2014, p. 15) para se opor ao discurso que se configura como hegemônico, e apresentar alternativas baseadas em uma perspectiva de justiça social. As categorias usadas por Souza para análise de conjuntura são: cenários, acontecimentos, atores, relações de força, articulações, a lógica do poder dominante e a lógica dos movimentos sociais.


As análises de conjuntura desenvolvidas na pesquisa, relacionam os principais acontecimentos que atravessam os recortes: temporal (2018-2021) e espacial (CHS). A partir dessas análises, são observadas a atuação dos grupos de poder pesquisados (poderes públicos, financeiros e populares) que corresponde nas três categorias analíticas identificadas: daqui não saio, aqui me saio e aqui me armo. Essas categorias podem mudar de cenário ou conter traços de mais de uma ou mais categorias, que se movimentam de acordo com o jogo de interesse dos grupos nas coisas instrumentalizadas.


Resultados:


As expressões “Daqui não saio!”, “Aqui me saio.” e “Aqui me armo…” são categorias analíticas. Como tal, têm o papel de sintetizar, evidenciar e distinguir, o modo como se posicionam os grupos sociais em disputa perante as transformações (programas, projetos) que se colocam no espaço urbano do Centro Histórico. representam fatos e acontecimentos envolvendo, em diferentes níveis, um ou mais dos três poderes estudados: populares, públicos e financeiros.

As três categorias apresentadas são expressões resultantes dos comportamentos observados, nos fatos e acontecimentos pesquisados. Cada uma tem o papel de sintetizar, evidenciar e distinguir, o modo como se posicionam os grupos sociais em disputa perante as transformações que se colocam no espaço urbano.


As subcategorias encontradas complexificam e aprofundam a análise desses comportamentos. Para encontrá-las usa-se a pergunta “Por que?” E, a partir de então, vem à tona, o jogo de interesses envolvidos em cada comportamento. Por exemplo: Daqui não saio: porque aqui é minha identidade; porque aqui é minha propriedade; porque aqui tenho oportunidade; porque aqui tenho visibilidade. Aqui me saio: porque aqui o Estado é neoliberal; aqui não tem política de governo; aqui tiro responsabilidades; aqui é para o turismo/turistas. Aqui me armo: porque: aqui tenho isenções fiscais; aqui a lei/o estado me protege; aqui tenho financiamento; qui tem preço de banana.


Discussão:


No período observado, destaca-se o modo como a palavra “patrimônio” e suas subcategorias (material, imaterial, cultural, identitário, coletivo, tutelado, entre outras) são expressas nas manifestações de cada posição dos poderes observados (públicos, financeiros e populares). Essas expressões resultam de processos históricos de instrumentalização: ou seja, de processos que modelam a ideia de patrimônio, desde o seu surgimento, de modo que este possa ser usado dando condições mais favoráveis à realização das ideias de cada poder.


Nessa modelagem, em geral, as ideias de patrimônio e cultura; os valores associados à história, memória e identidade, não como tratados coisas em si, como fatos, mas sim a partir manipulação de um imaginário coletivo sobre cada uma delas, de modo que possam ser usadas para que, as ações de cada poder, possam ganhar força e alcance nas mídias, nas ruas e nas redes ou para pressionar os campos opostos a se movimentarem, posicionarem e reagirem. Expressões saudosistas são as mais recorrentes nesse processo, sempre colocando em fragmentos idealizados do passado um algo a ser resgatado. Essa instrumentalização opera também dentro da ideia do patrimônio como um dispositivo, adotada por diversos autores como nas definições seguir:

Dispositivo cultural resultante do regime de patrimonialização que produz um saber sobre o objeto material ou imaterial e estabelece de onde ele vem, lhe atribui o estatuto de algo a ser conservado e transmitido. (Devallon, 2015)
Dispositivo de saber-poder que produz significados e qualidades atribuídas a objetos e práticas sociais mediante operações de identificação, seleção, conservação, gestão e promoção, com um objetivo político estratégico. (Sant'Anna, 2014)
O patrimônio não é um conceito, não é nem mesmo exatamente um campo, é exatamente um dispositivo no sentido que Michel Foucault deu a este termo (Fabre, 2016)3

A ideia do patrimônio, como dispositivo de saber-poder, na definição da prof.ª Marcia Sant'Anna, nos permite entender um ciclo de onde o patrimônio (seja esse um objeto ou uma prática) passa pela produção de um conteúdo (material e imaterial) e por operações institucionais de legitimação do mesmo para atender a determinadas finalidades. Fora desse ciclo a ideia de patrimônio pode seguir outros caminhos como expresso pelo prof. José Gonçalves:

É possível transitar de uma cultura a outra com a categoria “patrimônio”, desde que possamos perceber as diversas dimensões semânticas que ela assume e não naturalizemos nossas representações a seu respeito [essa categoria] em suas variadas representações, parece confundir-se com as diversas forma de autoconsciência cultural. (Gonçalves, 2009)

Como autoconsciência cultural, o patrimônio seria, na ideia desse autor, uma “categoria de pensamento” que “possibilita uma mediação entre os extremos das noções de cultura.” Essa mediação seria fruto de uma “relação orgânica e interna” entre uma ideia geral e institucionalmente reconhecida de patrimônio e outras formas de “autoconsciência individual e coletiva.” Desse modo o patrimônio pertenceria a formação de nossas subjetividades (nota) como também estaria presentes como dispositivo de saber-poder nos mecanismos de subjetivação (de formação da subjetividade). Pensar outras ideias sobre o que é patrimônio nos convoca a pensar também em outras ideias sobre o conceito de história. Esta pesquisa esboça uma história de um período curto e recente. Uma história contemporânea, ou história do tempo presente. Por estar tão próxima ela nos implica ao tempo que nos convoca a agir, por ser uma oportunidade de adentrar o “fundamento histórico da transitoriedade” (BUCK-MORSS, 2018), onde “os pedaços”, segundo o conceito da filósofa Susan Buck-Morss, estariam ainda vivos:

A história é feita de camadas. Mas as camadas não estão empilhadas em ordem. A força disruptiva do presente pressiona o passado, espalhando seus pedaços por lugares inesperados. Ninguém possui esses pedaços. Pensar que alguém os possui seria permitir que categorias de propriedade privada invadissem um terreno comum compartilhado em que as leis do patrimônio excludente não se aplicam. A história da humanidade exige um modo de recepção humanista. (BUCK-MORSS, 2018, p. 05)


REFERÊNCIAS:


AMARAL, Roberto. História do presente: conciliação, desigualdade e desafios [livro eletrônico]. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

BANIWA, Gersen, A produção simbólica e cultural dos povos originários. In: CAMPBELL; VILELA (Org.). Arte e Política na América Latina. Belo Horizonte: Brígida Campbell, 2021. (Pág. 52-74)

BUCK-MOORSS, Susan. O presente do passado. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbarie, 2018.

CABRERA, Julio. Esboço de uma introdução ao pensamento desde "América Latina" (Para além das "Introduções à Filosofia"). In: CAMPBELL; VILELA (Org.). Arte e Política na América Latina. Belo Horizonte: Brígida Campbell, 2021. (Pág.10-22)

CASTRIOTA, Leonoardo. Intervenções sobre o patrimônio urbano: modelos e perspectivas

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no College de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GONÇALVES, José Reginaldo S. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, v. 11, n. 23, p. 15-36, 2005. Disponível em <shttps://www.scielo.br/j/ha/a/wRHHd9BPqsbsDBzSM33NZcG/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 15/ jun 2018.

GONÇALVES. Patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (org.). Memória e patrimônio – ensaios. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 25-33.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

MARQUES, Rosa [et al.]. Pandemia crises e capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2021.

MIGUEL, Luis Felipe. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao Golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburdo, Expressão Popular, 2018.

PELBART, Peter Pál. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

SANT'ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de áreas urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.

SANTOS, Theotônio dos. Evolução Histórica do Brasil: da colônia à crise da Nova República. São Paulo: Expressão Popular, 2021.

SILVA, T.; STABILE, M. (orgs.). Monitoramento e pesquisa em mídias sociais: metodologias, aplicações e inovações. São Paulo: Uva Limão, 2016. [digital]

SOUZA, Herbert José de. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

TALIBOY. Luto enquanto prática e tática visual de pirraça urbana da multidão sapatransbonde. Salvador, 2021. 276 f. Dissertação (Mestrado – Artes Visuais) Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas Artes.

TORRES, S.;SAVAGET, T. (org) As lutas nas cidades hoje. São Paulo: Instituto Pólis, 2019.


1 O primeiro bombardeio foi feito pelos holandeses em invasão no Brasil no século XVII e o segundo em 1912, com bombas vindo do Forte São Marcelo – fortificação que fica na Baía de Todos os Santos, posicionada em frente ao Palácio –, autorizadas pelo presidente da República na época, o Marechal Hermes da Fonseca, em função de uma disputa política com o governo local, travada entre o senador Rui Barbosa e o então ministro da Aviação e Obras Públicas José Joaquim Seabra, que era apoiado pelo presidente.

2 A distinção aqui feita entre as dimensões macropolítica e micropolítica, segue a linha de pensamento trazida por Rolnik no livro “Cartografia Sentimental” (2006). Neste livro ela distingue: primeiro, que essas dimensões possuem lógicas “radicalmente” diferentes; segundo, que essa diferença não é uma questão de escala de alcance político no espaço (corpo, casa, bairro, cidade, mundo) ou na estrutura social (Estado, corporações, comunidade, família, sujeito). Macropolítica e micropolítica seriam “dois tipos de sistema de referência” (ROLNIK, 2006) segundo os quais os desejos se produzem. No sistema de referência macropolítico está o que é visível o que é “apreensível pelo olho-retina”, é o sistema onde se “cria os roteiros de circulação no mundo” e as “diretrizes de operacionalização para a consciência pilotar os afetos” (ROLNIK, 2006), é onde circulam, por exemplo, os valores culturais, (depois de significados ou ressignificados) e seus modos de apreensão, suas manifestações e seus objetos, onde eles realizam sua trajetória de surgimento, transformação, expansão (com maior ou menor capilaridade social), reclusão ou desaparecimento. No sistema micropolítico estão os “afetos”, o que é “invisível e inconsciente”, “incontrolável” o que está fora do “território em que até então nos reconhecíamos” (ROLNIK, 2006), seria onde, por exemplo, acontecem as atribuições de significação e ressignificação dos afetos que serão incorporados em objetos no corpo, na linguagem e nas manifestações (físicas e digitais), como valores culturais.

3 Segundo o “Pequeno Glossário foulcaultiano”, publicado no site revista Cult, “Dispositivo - Designa as estruturas do conhecimento e os vários mecanismos institucionais, físicos e administrativos que propiciam e mantêm o exercício do poder dentro do corpo social”. No mesmo dicionário é interessante também marcar aqui a ideia de cultura, que é extraída do livro de Foulcault, “A hermenêutica do sujeito”, a cultura descreve uma “organização hierárquica de valores, acessível a todos, mas que, ao mesmo tempo, é a oportunidade para se manifestar um mecanismo de seleção e exclusão”. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/pequeno-glossario-foucaultiano/>. Publicado em: 15 out 2021. Acesso em: 20 out 2021


65 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page