ARQUITETURA: UM GIRO PARA REFORMULAR IDEIAS
Autora: Solange Valladão
Arquiteta urbanista, doutoranda em Arquitetura, Conservação e Restauro
Este ensaio apresenta uma reflexão sobre a arquitetura. Busco um giro conceitual e um distanciamento crítico para dar conta da proposta de instigar a reformulação de ideias, palavras e frases, que já não nos dizem algo muito sincero e honesto, sobre os interstícios da complexa realidade da disciplina, da profissão e das práticas do exercício cotidiano da arquitetura, seja ele formal ou informal. Sendo esta última a grande realidade de uma cidade como Salvador (BA), que é de onde dou conta de falar melhor.
Primeiro vamos observar o que se entente por arquitetura, por um repertório de referências sobre sua definição, e que se some ao esboço que cada um tem, em seu imaginário, sobre essa palavra. A partir dai, pensar outras possibilidades de análise crítica da arquitetura que nos cerca agora (presente e passado) e da que se articula para o futuro.
Quantas arquiteturas podemos definir?
Selecionei uma mostra de 6 entre 121 declarações sobre o que é arquitetura, feitas por pessoas (profissionais da arquitetura ou não, atuantes ou já falecidas) de diversas partes do mundo (BATATTO, 2016). As seis frases escolhidas, foram as que mais me chamaram a atenção por buscarem uma definição que aponta para uma direção fora do lugar-comum, especialmente quando este deslocamento parece ser, da própria frase com relação a quem a diz:
1.Arquitetura é, definitivamente, um ato político. Peter Eisenman [arquiteto americano] 2.A arquitetura está sempre relacionada ao poder e relacionada a grandes interesses, financeiros ou políticos. Bernard Tschumi [arquiteto suíço] 3.A arquitetura é largamente irrelevante para a grande massa da população mundial, porque os arquitetos escolheram ser assim. Bruce Mau [designer canadense] 4.Arquitetura não é apenas sobre a construção. É um meio de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Diébédo Francis Kéré [arquiteto africano] 5.A arquitetura é muito importante para ser deixada apenas para os homens. Sarah Wigglesworth [arquiteta britânica] 6.A arquitetura é 90% negócios e 10% arte. Albert Kahn [arquiteto americano]
Com base nas 121 declarações, fiz os gráficos abaixo que mostram a relação de sexo e pais de origem das declarações selecionadas na matéria:
Gráfico 01: Número de declarações quanto ao sexo:
* “ambos” corresponde a que duas pessoas do mesmo escritório (uma mulher e um homem) falaram sobre o que é arquitetura. No caso foi Kazuyo Sejima (ela) & Ryue Nishizawa (ele) no Discurso na Cerimônia do Prêmio Pritzer em 2010 (“Arquitetura é onde a imaginação encontra vida.”).
Gráfico 2: Número de declarações quanto ao país de origem:
A ordem em que aparece os países, corresponde aos nomes que foram surgindo na lista, da primeira até última declaração. No gráfico estes nomes estão em ordem da esquerda para direita fazendo um zigue-zague (ex. EUA, Iraque, Dinamarca, Suíça, Inglaterra, etc.).
Além das seis frases que selecionei, tem algumas curiosidades sobre esta lista: a única declaração do Brasil é tomada de Oscar Niemeyer (“Arquitetura é invenção.”); entre os diferentes tipos de pessoas e contextos nos quais as declarações foram feitas, tem a do Príncipe Charles (“A arquitetura é uma linguagem: os novos projetos devem obedecer a regras gramaticais para evitar dissonâncias com as estruturas existentes.”); declarações de arquitetos ao ganharem o prêmio Pritzker como a do arquiteto americano Thom Mayne (“Arquitetura é uma maneira de ver, pensar e questionar nosso mundo e nosso lugar nele.”), e arquitetos de quem são selecionadas duas declarações como o italiano, naturalizado britânico, Richard Rogers (“Arquitetura é sempre política.” e “Arquitetura é muito complexa para apenas uma pessoa para fazê-la, e eu adoro colaboração.”).
A partir dos gráficos apresentados, podemos pensar criticamente quem faz arquitetura hoje? Segundo a declaração do arquiteto americano Martin Filler: “Arquitetura não é uma profissão para os fracos de coração, fracos de vontade, ou de curta existência.”. Essa é a realidade da arquitetura hoje? Seria por isso que as declarações são majoritariamente masculinas e estadunidenses? É inegável que a produção da arquitetura e do urbanismo hoje está majoritariamente, sob a influência estadunidense e masculina… questiono um pouco a centralidade estadunidente quando a produção, mas isso demandaria outra pesquisa.
De todo modo, estas são referências que atravessam os ideiais de estudantes em todo mundo e no Brasil não é diferente (vendo uma mostra de trabalhos de alunos em concursos, por exemplo). Independente de sexo e origem social, com boas exceções, percebemos aqui também, esse ideal de produção arquitetônica. Isso repercute, seja no estilo arquitetônico ou nos meios de produzi-lo, aplicando as últimas tecnologias de programas e aplicativos, cujo domínio tem se tornado prioritário aos das tecnologias mais elementares de nossa realidade de produção arquitetônica. Seja em relação ao conhecimento de como se faz uma boa alvenaria de blocos, como dimensionar corretamente os espaços para a escala humana e a acessibilidade (adultos, crianças, idosos), etc.
Mesmo que a escala humana e a acessibilidade sejam temas que têm tomado de forma crescente, as discussões e pautas de eventos do setor, os benefícios destes ainda demoram a chegar à prática do desenho urbano, ou chegam de forma incompleta. É só vermos o que se faz em Salvador com relação a acessibilidade das calçadas para pessoas com deficiência visual: o piso tátil, em regra, não corresponde a um percurso que faça sentido para essas pessoas, pois é constantemente interrompido entre calçadas, com e sem este tipo de piso. Ou coisas mais absurdas acontecem como o caso de uma amiga minha que mora nos Barris e foi notificada para regularizar o passeio de sua casa pelo programa “Eu curto meu passeio” da Prefeitura de Salvador. Minha amiga, mesmo sem poder, investiu e fez a reforma para não pagar a multa.
Passeio pronto e arrumado, chega o programa do Governo do Estado “Pelas ruas do Centro Antigo de Salvador” voltado para a recuperação de passeios e ruas do Centro Antigo da cidade (onde está localizado o bairro dos Barris, onde ela mora). Desta vez, com recursos do próprio Estado, este chegou na rua dela, demoliu o passeio que ela tinha feito para fazer outro, no padrão deste projeto e sem o piso tátil, exigido no programa da prefeitura (um detalhe, nem o passeio da casa antes e nem da cada depois da dela, foram ainda notificados pela prefeitura). Ela, registrou tudo, o antes e o depois, e os responsáveis, para qualquer acerto de contas com a Prefeitura.
Mas o que é arquitetura?
Voltando ao nosso giro estatístico sobre as declarações sobre o que é arquitetura, é interessante ver a diversidade de países que surgiram na seleção, intencionalmente ou não. São 24 países que abrangem os cinco continentes (Américas, Europa, Ásia, Oceania e África). Com isso me dou conta que poucas vezes temos uma abordagem que traga referências de produção e reflexão a partir de uma mostra dos cindo continentes. Por um lado é compreensível devido a grande dificuldade que seria encarar uma pesquisa, para elaborar uma seleção de qualquer tipo, diante da diversidade de estilos, técnicas e conceitos por trás da produção arquitetônica em cada um deles.
Mas não deixa de ser também, uma forma interessante de sairmos dos grandes polos culturais (EUA e Europa) ou do chamado eurocentrismo cultural, que definiu nossa formação de pais surgido pelo processo de colonização europeia. Assim, vou tomar para mim este grande risco, com o intuito de quebrar algumas formas tradicionais de leitura sobre e arquitetura, como por exemplo: por períodos de desenvolvimento civilizatório (há diferentes estágios civilizatórios no mundo); por estilo arquitetônico (há diferentes estilos arquitetônicos não considerados na literatura acadêmica sobre o assunto) e, também para mudar o centro do olhar entre os EUA e na Inglaterra, como vimos na mostra de países predominantes das 121 definições selecionadas.
Com isso proponho percorrer um pouco como é a arquitetura nos cinco continentes (menos na Antártica onde não há tradição histórica de arquitetura que contribua para o estudo geral da disciplina), com uma mostra ilustrativa para instigar um pouco mais a pensarmos sua diversidade. Bom claro que nesta mostra, não deixo de mostrar um pouco também, o tipo de arquitetura com a qual me identifico, ainda que tenha buscado, principalmente, outros critérios como projetos em países menos destacados e também de arquitetos menos conhecidos. Cada projeto pode ser visto de forma mais completa, clicando no nome do mesmo.
ÁFRICA
Escola Secundária Lycee Schorge em Burkina Faso (NO/África). Ano 2016. Arquiteto Francis Kéré.
AMÉRICAS
Companhia Hidrelétrica do São Francisco / Francisco Assis Reis. Salvador-BA, 1976.
ÁSIA
Teart na Podole. Escritório Arquitetos Drozdov & Partners. Andriyivsky descent, Kyiv, Ucrânia, 2017.
EUROPA
Casa da Paróquia de Ribe. Arquitetos Lundgaard & Tranberg Architects. Ribe, Dinamarca, 2015.
OCEANIA
Casa 33.1. Grafika Arquitetos. Sydney, Austrália, 2016.
Possibilidades de análise da arquitetura
Trago agora algumas categorias que entendo como sendo as mais expressivas, entre as que são normalmente usadas para análise da arquitetura, e as priorizo segundo esta ordem: a cultura, a função, o sistema construtivo e a estética. Na cultura e no sistema construtivo, está embutida outra categoria importante que é o clima. Para pensar essas categorias de modo mais aberto, faço uma espécie de “bate-bola” com três fragmentos das frases usadas por Silke Kapp (2005) como argumentos do que ela considera como sendo os “fundamentais para o desenvolvimento de novas abordagens da arquitetura na teoria e, principalmente, na práxis.”:
1. “Não existem necessidades além ou aquém da sociedade. Portanto, não existe nenhuma espécie de função natural e invariante para a arquitetura. Toda função que ela assume tem caráter social.” – Podemos pensar a cultura então como um caráter fundador da arquitetura, com a construção de edifícios, abrigos, templos, etc. ou seja, de construções para os mais diferentes fins de acordo com as tradições de cada cultura, tradições estas que incorporam como elementos mais básicos, os materiais mais disponíveis e o clima.
2. “Todos os indivíduos e todos os grupos têm, ao menos potencialmente, a capacidade de tomar decisões sobre o espaço que usam. Nenhum mecanismo social de criação de necessidades é absoluto e sempre existe a possibilidade de recusa ou de invenção de novos modos de uso.” – Podemos mais desta vez pensar quanto a função na arquitetura e sua estética. Sabemos que esta variam de acordo com as culturas. Arquitetos de um determinado país e tipo de formação não é imediatamente capaz de elaborar projetos para culturas diferentes da sua. A nossa formação, mesmo que tenha elementos similares em quase todo mundo, como o estudo da chamada arquitetura clássica, e de materiais como o concreto, não é em nada suficiciente para dizer que há uma ideia mais universalizada quanto ao tipo de funções que os espaços abrigam (por exemplo não é em toda cultura que temos nas habitações uma distinção de espaços como sala de jantar e sala de estar). Especialmente sobre sua estética é bem conhecido a personalização dos ambientes por quem os ocupa com o passar dos anos. A expressão geralmente mais rígida dos espaços definidos pelos arquitetos, vai ganhando outras formas, texturas e cores para se adequarem melhor ao estilo e às necessidades de quem os usa. Sem contar a arquitetura que é produzida por pessoas que não são arquitetos ou engenheiros, que muitas vezes pode nos inspirar pela inventividade, criatividade, funcionalidade e resultado estético alcançados.
3. “O arquiteto não é um conhecedor de todas as coisas, capaz de resolver todos os problemas, mas um indivíduo que fala a partir de uma das muitas posições possíveis dentro do tecido social e que dispõe de um conhecimento específico que também não é neutro.” – Aqui juntamos as categorias de análise da arquitetura que selecionei, como mais relevantes, segundo uma certa ordem: cultura, função, sistema construtivo e estética; com os três argumentos relacionados por Kapp para novas abordagens da teoria e da práxis arquitetônica. Para tal, entra um novo elemento, que é a ideia difundida na literatura arquitetônica do arquiteto como demiurgo. Na sua origem a palavra demiurgo significa: “o que trabalha para o público, artífice, operário manual”, demios significando “do povo” (como em demos, povo) e-ourgos, “trabalhador” (como em ergon, trabalho.). Mas há ainda a diferença entre a concepção do demiurgo platônico e o gnóstico. De maneira sucinta posso dizer aqui que o primeiro, seria dedicado a construir o bem do universo em termos de ordem das formas, mas sendo este uma figura neutra, nem bom nem mal e cujo bem, estaria ligado a idealização das formas, a um modelo ideal das formas; e no segundo o demiurgo, de modo mais sucinto ainda, seria uma entidade do mal, pois segundo os gnósticos “existe incompatibilidade entre a esfera divina, que é luz, e o universo”, sendo o universo obra do demiurgo (1). Vendo assim parece um paradoxo que na prática a arquitetura seja tão distante do povo como veremos a seguir na pesquisa realizada pelo CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Como questiona a professora do PPGAU-UFBA, Paola Berenstein (2016) “Se a concepção em projeto fosse simplesmente uma questão de “inspiração divina” e um ato demiúrgico, como seria possível qualquer tipo de ensino de projeto?” Ela coloca essa questão em um contexto com o qual finalizamos nosso “bate-bola” cujo intuito foi dar um outro giro para “pensarmos o projeto de arquitetura e urbanismo de forma mais complexa e ampla, ou seja, como uma forma de produção de conhecimento, de criação cultural, de transformação social e, também, de ação crítica e política […]”.
Para fechar: uma olhada sobre a produção da arquitetura no Brasil
Apresento aqui alguns dados da Pesquisa do CAU-BR/Datafolha, realizada em 2015, e que faz um “Diagnóstico sobre arquitetura e urbanismo no Brasil”. Este nos ajuda a contrapor e a confirmar, algumas opiniões correntes sobre a arquitetura e o que trouxemos aqui neste ensaio, com os fatos apresentados nesta mostra.
Gráfico 3: Contratação de arquitetos e urbanistas
Fonte: Pesquisa CAU-BR/Datafolha, 2015.
Tabela 1: Como o brasileiro constrói
Fonte: Pesquisa CAU-BR/Datafolha, 2015.
E agora, o que é arquitetura?
Para mim, arquitetura é a articulação de um conjunto de condições culturais, técnicas, econômicas, funcionais e artísticas, que abrangem mais ou menos possibilidades de configuração de espaços arquitetônicos, para as necessidades humanas e da natureza.
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NOTAS:
1. DEMIURGO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2017. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2017.
REFERÊNCIAS:
BARATTO, Romullo. 120 Definições de Arquitetura. Archidaily. Notícias. Publicado em: 05/12/2016. Disponível em: . Acesso em: 24/03/2018. COLIN, Sílvio. Uma introdução à arquitetura. Rio de Janeiro. Editora Uape, 2006. Diagnóstico sobre a arquitetura e o urbanismo no Brasil. CAU-BR / DATAFOLHA, 2015. Disponível em: . Acesso em: 26/03/2018. JACQUES, Paola Berenstein. O projeto como processo. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 176.03, Vitruvius, ago. 2016 . KAPP, Silke. Por que Teoria Crítica da Arquitetura? Uma explicação e uma aporia. In: Maria Lúcia Malard. (Org.). Cinco Textos Sobre Arquitetura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, v. , p. 115-167. Disponível em: . Acesso em: 25/03/2018 LEMOS, Carlos. O que é arquitetura. São Paulo. Braliense, 1994. MAURA, Souto de. Catálogos de Arquitectura Contemporânea. Barcelona. Editorial Gustavo Grill S.A., 1990.
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