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Solange Valladão

UMA IDEIA SOBRE ARTE CONTEMPORÂNEA: ARRISCANDO UM RISCO

Atualizado: 17 de fev. de 2022


Autora: Solange Valladão

Arquiteta urbanista, doutoranda em Arquitetura, Conservação e Restauro


Falar sobre a arte e o contemporâneo, nos levaria a uma discussão muito ampla. Juntos essa amplitude se expande. Mas vou tratá-los aqui ao gosto do dadaísmo, ou um pouco isso: juntando referências, o que penso, o que surgir no fluxo do texto, sem perder a ideia de trazer esse assunto de modo mais pessoal que erudito, ou seja o que for que se pense quanto as credenciais de quem se propõe a escrever sobre coisas assim.

Começo por esclarecer que entendo o dadaísmo como o movimento que provocou a mudança no panorama artístico ocidental, no início do século XX (entre 1910 e 1920), para o que hoje conhecemos como arte contemporânea. Com essa hipótese seguirei desenvolvendo este texto. Ele foi o primeiro movimento onde as expressões artísticas se colocaram, prioritariamente, como expressão crítica e autocrítica, de forte teor político e o fez explorando as novas tecnologias que surgiam como a fotografia e o cinema mudo – embora já houvessem experiências com o cinema sonoro desde 1921, este só chegaria em 1927 com o filme americano, \”O cantor de jazz\”, de Alan Crosland (KEMP, 2011, p. 78).


O cavalinho de pau


O dadaísmo aconteceu quase ao mesmo tempo na Europa e nos EUA. O nome do movimento foi encontrado em 1916 pelos artistas alemães, exilados na Suíça, Hugo Ball e Richard Huelsenbeck – \”dada\” é cavalinho de pau em francês – quando buscavam “um nome incomum para seus números de cabaré” (FAHRTING, 2001, p. 411). Os dadaístas empregaram livremente materiais e técnicas já usadas, aos quais introduziram outros, escolhidos segundo sua força expressiva e provocadora, na elaboração poética e crítica dos temas abordados no período (início do século XX), como o mercado de arte, a passagem pela Primeira Guerra Mundial, a burguesia, a crescente industrialização.

O emprego de recursos radicalmente livres para realizar a expressão artística, e o fato de estes terem por finalidade a crítica e o questionamento político, consiste no conjunto de características que considero como as  que modularam – ou vêm modulando até hoje – a virada para a arte contemporânea.

Uso aqui os nomes de movimentos artísticos apenas como guia. E, só os são, quando se trata de arte ocidental. E nesta, apenas como um ponto de referência e não como um molde determinante de uma gama de expressões artísticas diversas entre si, e produzidas no mesmo período. Este modo de falar da arte pelo caminho da produção e história ocidentais, e pelos movimentos artísticos que os percorreram, é o tipo de história de arte que foi tradicionalmente oferecida como objeto de estudo nos meios acadêmicos, de onde eu venho.

Fora deste contexto não são de grande utilidade os nomes de movimentos artísticos sob os quais se possa organizar a forma como se desenvolveu a arte na Ásia e na África, por exemplo. Isso já começa a mudar com o movimento de descolonização da educação, do conhecimento e da cultura, e de saída do eurocentrismo das fontes intelectuais e históricas. E começa a mudar, pelo entendimento de novos parâmetros sobre o que é cultura, o que é arte e de como esta se constitui na cultura das diferentes sociedades humanas. Com relação aos países colonizados, tem ajudado muito neste sentido a maior difusão dos textos e obras de autores africanos como Franz Fanon e Achille Mbembe, e de brasileiros como Eduardo Viveiro de Castro e Laymert Garcia dos Santos, entre muitos outros.


Fora do eurocentrismo e do ocidente


A arte oriental e africana, mesmo quando ainda era pouco estudada, já influenciava o trabalho de artistas como Pablo Picasso e antes dele, no século XIX, Paul Gauguin e Willian Holman Hunt (FAHRTING, 2001, p. 11). Estas tornam-se mais conhecida pelos europeus a partir o século XV, mas as pessoas que as faziam ainda são, em grande parte, anônimos para nós. Quando muito, vemos nos museus e galerias o nome do país, cidade ou de que povo veio a obra, ou de onde esta foi, apropriada, saqueada. Tem crescido nos últimos anos a discussão sobre o repatriamento de obras dos países colonizados ou que foram derrotados em guerras, tamanha é a quantidade de obras, das mais diversas, que saíram destes países e que hoje são acervo de particulares, galerias e dos museus mais visitados da Europa e dos EUA – nisso está embutido também o valor dessas obras como atração da indústria do turismo-cultural.

Sobre quem produz essas obras, há o aspecto de que, a valorização da individualidade e autoria da obra de arte, é mais conhecido no campo da arte  como uma característica das sociedades ocidentais. Desde a idade antiga, os ricos e poderosos disputavam o prestígio de patrocinar, adquirir e ostentar obras e trabalhos dos artistas mais talentosos. Em outras sociedades de povos originários africanos e brasileiros, por exemplo, a arte é produzida como expressão mais coletiva que individual – embora também hajam artistas destacados e igualmente disputados – e dentro de um valor mais social que financeiro, intrínseco aos eventos, ciclos e as representações sociais de cada povo. O que não deixa também servir para as representações de poder e de riqueza em alguns desses povos, como por exemplo, nos povos originários da América Central (maias), ou de parte da África (povos ashanti, litoral da África ocidental), entre outros (FAHRTING, 2001, p. 199).

Podemos deduzir que, em parte, os nomes dos artistas valorizados e reconhecidos nestas sociedades, não tenham chegado a nós por causa do filtro colonial feito sobre a história dessas sociedades e pelo fato dessas obras não serem normalmente adquiridas junto aos artistas ou em mercados de artes, e sim saqueadas e apropriadas de seu lugar de origem, como propriedade dos povos colonizadores, vencedores de conflitos, invasores, como já mencionei.

Assim sendo, porque ainda falo sobre e também estudo movimentos artísticos ocidentais e eurocêntricos? Primeiro, porque o acesso a bibliografia do que foi e está sendo produzido fora desse campo,  é uma descoberta recente para mim. Há pouco tempo que faço um estudo mais sistemático, explorando a riqueza de alternativas fora desses campos que nos são oferecidos, que também são parte do que somos, como povo mestiço de raças e de culturas. Olhar o panorama da arte a partir do que é produzido no Brasil, já nos trás cores e possibilidades bem diferentes.

Começo o modernismo brasileiro que, a partir da repercussão da Semana de Arte Moderna de 1922 (entre 11 e 18 de fevereiro, no Teatro Municipal, em São Paulo), fez para nós uma grande mudança neste sentido. Desbravou o significado da mestiçagem de uma forma mais ousada e libertadora, com a ideia de antropofagia. O Manifesto Antropofágico – escrito por Oswald de Andrade e publicado no primeiro número da Revista de Antropofagia, em maio de 1928 – deu outro sentido à apropriação cultural e ao livre uso das referências disponíveis a qualquer artista de qualquer modalidade.

Entendo que desde então, se era mais livre para revisitar nossa produção artística e perceber, admitir que esta não era lá muito original; inclusive os melhores trabalhos que circulavam pelos museus, galerias e casas ricas, reproduzindo temas e estilos de fora ou idealizando com o olhar de fora temas locais – o que só é um problema quando não admitido.  Este esmero em reprodução do que era feito lá fora, não deixa de ser, em parte, algo esperado na antropofagia. Só que esta não se detém apenas ao de fora. Ela sai “comendo” tudo que encontra pela frente como diz o escritor Antônio de Alcântra Machado no texto \”Abre-Alas\” do primeiro número das Revista de Antropofagia, lançado em 1928:

A geração actual coçou-se: apareceu o antropófago. O antropófago: nosso pai, princípio de tudo. Não o índio. O indianismo é para nós um prato de muita sustância. Como qualquer outra escola ou movimento. De ontem, de hoje e de amanhã. Daqui e de fora. O antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só êle fica lambendo os dedos. Pronto para engulir os irmãos. (MACHADO, 1928, p. 1). 

Posto este contexto, que nos ajuda a situar a ideia do que quero desenvolver aqui sobre a arte contemporânea, volto para minha hipótese onde digo que a marca do contemporâneo na arte ocidental surge com o dadaísmo,  e acrescento que o marco dessa virada (o que para muitas pessoas não será novidade alguma) foi dado pelo artista francês Marcel Duchamp, seja em 1913 com a obra “Roda de bicicleta” (Paris) ou em 1917 com a obra “A fonte” – esta ficou mais famosa, e é mais lembrada, pelo rebuliço que causou, por ter sido submetida a um concurso de arte em Nova York, e rejeitada pelo juri.

Duchamp elaborou a ideia do “ready-made” (que pode ser traduzido como: já pronto, feito ou não original), que consiste em transpor um objeto ou elemento da vida cotidiana, que a princípio não seria reconhecido como produto artístico, e ressignificá-lo conceitualmente como obra crítica do campo das artes.

É essa técnica de ressignificação crítica e política, umas das características mais marcantes que viria a determinar a produção de toda forma de expressão artística, hoje nomeada como arte contemporânea. Mesmo já sendo reconhecido como artista na França, é a partir da sua produção em Nova York que a obra de Duchamp é tomada, historicamente, como marco da arte contemporânea – ele mudou-se para os EUA em 1915, assim como outros artistas que se exilaram durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).


A Pop Art


Outro movimento que na década de 1960, fez uma nova inflexão para arte contemporânea e que, do mesmo modo, influenciaria dai por diante sua produção em todo mundo, é o “pop art” (arte popular). O artista americano Andy Warhol é seu nome mais conhecido. Mas os elementos que caracterizariam a pop art, já estavam claramente enunciados em 1956 pelo artista inglês Richar Hamilton: “popular (feita para o grande público); efêmera (extinção em curto prazo); descartável (facilmente esquecível); barata; produzida em massa; jovem (dirigida para a juventude); espirituosa; sexy; \’macetada\’; big business.” (FARTHING, 2001, p. 484-485).

Ainda que leve o nome “popular” na língua de origem, este movimento artístico, não se traduz como entendemos a arte popular no Brasil. A “pop art” é produzida e difundida entre o meio erudito da arte, chancelado por curadores em galerias e museus de todo mundo, com aceitação e valorização bem diferentes das que conhecemos da arte popular no Brasil (o mesmo pode ser considerado para a arte popular de outros países). Como vimos com Hamilton, ela é feita para ser popular, “para o grande público”, mas não por artistas do meio popular.

A “pop art” – como o “ready made” dadaísta – carrega em suas produções, um tensionamento crítico sobre a arte, e o faz incorporando elementos industrializados, da cultura de massa – que estava em franca emergência no período – e referências da estética de ambos. Ela também marca a aproximação mais comercial da arte com a publicidade e a indústria cultural, fundindo-se no sistema da arte. Esta é uma expressão contemporânea para dar conta de onde está localizado o valor da arte, pois é este, que segundo o artista plástico Zílio (et al, 2010, p. 191), dá o \”solo institucional concreto que é responsável pelo modo de penetração do trabalho de arte na sociedade\”; que promove sua visibilidade globalizada e a circulação pelo mercado também global. O que pode fazer os artistas contemporâneos andarem em campo minado, e serem por vezes paradoxais.

Com a pop art, estamos em um período depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e em plena Guerra Fria (de 1945 a 1991, entre EUA e antiga União Soviética, hoje Rússia) e o panorama da arte ocidental é fortemente influenciado pelo impacto deste contexto mundial. Neste período se evidencia a articulação da arte com o sistema da arte; articulação esta que tem caracterizado o que hoje conhecemos como grande parte da produção contemporânea, ao menos aquele que circula nas grandes galerias, museus e centros culturais. Nestes, a demanda por exposições de porte e com artistas de renome, é também resultado de uma disputa globalizada por números crescentes de visitantes, compradores de ingressos e souvenirs, etc. que ajudam a manter a visibilidade e a atratividade de investimentos para estes espaços e para as cidades que os abrigam.

Este é um dos aspectos que coloca a cultura (a arte também como o patrimônio cultural e histórico) como mercadoria de grande valor, absorvida pela indústria cultural, em cidades que disputam este mercado, fomentando a indústria do turismo em geral; em muitos casos com impactos negativos sobre a qualidade de vida nas cidades e sobre a população de baixa renda que mora junto aos centros, que se tornaram alvo de especulação imobiliária, geralmente com respaldo do governo local.

Esse tensionamento crítico dentro e fora da produção artística, mas que qualquer outra característica formal, é um dos aspectos que dá mais identidade a arte contemporânea desde que esta se nomeia como tal, por artistas e críticos de arte. Outros, são a aproximação da arte do cotidiano, desmaterializando o trabalho do artista do espaço da forma artísticas; o dialogo com as ciências e a tecnologia e, como já vimos, uma paradoxal aproximação com o marcado de arte e a internacionalização da produção artística, potencializada nos últimos anos pelos conteúdos difundidos em páginas da internet e redes sociais de artistas, museus, centros culturais, instituições, etc.


Para chegar na arte contemporânea no Brasil


Por este caminho que fiz até aqui, identifico que no Brasil a curva para a arte contemporânea foi traçada pela expressão neoconcreto, que foi elaborada como resposta crítica ao caminho que a produção artística vinha tomando no país entre os eixos Rio de Janeiro e São Paulo. Em março de 1959, foi publicado no Jornal do Brasil o Manifesto Neoconcreto, escrito por Ferreira Gullar e assinado por artistas reunidos sob esse nome (Amilcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape e Reinaldo Jardim), todos participantes também da I Exposição Neoconcreta no Museu de Arte Moderna – MAM, do Rio de Janeiro neste mesmo ano – o Manifesto foi elaborado como texto para a exposição. Segundo as palavras no próprio Manifesto, colocadas logo no início, este veio como \”uma tomada de posição em face da arte não-figurativa \’geométrica\’ (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista.\”

Os movimento artísticos  citados acima, compreendem um período entre os anos de 1910 até o ano 1959, quando este foi publicado. Este extenso leque temporal e o forte teor critico sobre os principais movimentos artísticos do século XX, que encontravam expressão no país, mostram as ideias neoconcretas como uma das referências do desenho de arte contemporânea que trago aqui. Reforçando esse entendimento, as pessoas de diferentes expressões artísticas reunidas sob este nome, não se identificavam como movimento ou grupo e sim como artistas reunidos pela \”evidente afinidade das pesquisas que realizam em vários campos\” (GULLAR, 1959). O manifesto começa por se referir ao neoconcreto como uma expressão – \”a expressão neoconcreto\”; além disso, propunham uma reinterpretação destes movimentos fora das leituras teóricas mais extremadas a que alguns artistas os levaram, \”dando prevalência a obra sobre a teoria\” e acreditando ser possível \”uma total integração da arte na vida cotidiana\” (GULLAR, 1959).

Na década seguinte, 1960, surgem as obras que considero emblemáticas da arte contemporânea no Brasil – diria que o são quase por sendo comum. Lydia Klark com a série “Bichos” (1960-1964): construções metálicas geométricas articuláveis por meio de dobradiças, que requerem a participação do espectador para explorar as possibilidades formais dos diferentes aspectos tomados pela obra a cada movimento feito em suas articulações. Hélio Oiticica com os parangolés: peças que apenas se realizam enquanto obra quando são usadas, vestidas pelo público, se materializando como estandarte, bandeira, tenda e capa de vestir, que se põem em ação na dança, no movimento. Estes artistas ressignificam na cultura brasileira o tensionamento crítico, a aproximação com o popular e o cotidiano, a experimentação tecnológica e a fusão de técnicas; o que faz a arte contemporânea em geral se aproximar mais ainda de práticas e ideias interdisciplinares que impulsionavam as possibilidades criativas, como também estas absorvem inovações e reflexões críticas, resultantes dos trabalhos artísticos.

Onde está a arte contemporânea?

Vimos que a aproximação com o cotidiano e com sua diversidade mais profunda, intima e social, e o olhar implacavelmente crítico sobre seu próprio tempo e a arte nele produzida são, em síntese, os traços principais do que trouxe até aqui sobre a arte contemporânea.

Assim colocado, tento responder a essa questão falando de artistas que entraram pelo meu cotidiano, me emocionaram com suas obras, me fazendo olhar as coisas de um novo modo crítico, do qual também não escapo. São artistas de uma sensibilidade aguçada para alcançar potências de transpor esse abismo em que o mundo contemporâneo parece ter nos jogado. De diferentes expressões (arte urbana, música e literatura) e de quase três gerações que cobrem mais de meio século de produção, suas obras e suas posições arte-políticas diante de si e da vida, encarnam a arte contemporânea.

Começo com a artista urbana Talitha  Andrade. Para mim, sua arte dá  um sentido especial para  esta frase do filósofo  francês Jaques Rancière: “A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender,  de dar a ver,  de  construir  a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos.” (RANCIÈRE, 2013). Ela  faz isso  nos  instigando  a  pensar e lutar contra  o  que  nos oprime, sufoca, tira o ar. E o faz com um olhar forte e sincero de quem segue a si mesma. Seu  trabalho é acima de tudo, um gesto de solidariedade a quem ainda está na sua caverna criativa, existencial; escurecida pelo medo de não ser uma pessoa compreendida ou aceita. Assim, ela enche o coração de quem está começando com um conselho que serve para estas pessoas e para quem quer começar qualquer coisa na vida, a qualquer tempo:

– Que  conselho  você  daria  para  as  meninas  que estão começando? – Coragem  (risos). Respirar, levantar o peito e não ter medo. O medo é um boicote que nos aprisiona no conhecido e nos impede de correr junto com nossos sonhos. Os boicotes  estão dentro da gente. E essa lição a gente aprendeu direitinho. Então sejamos corajosas para desconstruir nossa própria criação que é limitadora e nos castram em sua essência. O caminho com coração existe e as pessoas também! (ANDRADE, 2014). A ideia da caverna como lugar onde nos escondemos, temendo expor nosso impulso criativo fora do estabelecido e do aceito, veio do músico Tom Zé. Ele sabe encontrar os que nela se escondem, em seu processo de iniciação. Ele mostrou como reconhecer neste ser encavernado uma potência. Suas palavras, como as Talitha trazem um sentido de amor, que ainda não sabia que arte que podia dar às pessoas:

Sei que agora tem meninos e meninas, nessa Bahia tão sacudida pelo terremoto santo da invenção, que estão na encruzilhada, sentindo a estranheza de querer alguma coisa que a escola não ensina, que os pais não estão esperando deles. Esses, os artistas na incubadeira, estão na solidão natural do momento eque vão fazer seu voto – abandonar o mundo formal dos escritórios, bancos e balcões. Sinto que é preciso ir lá na caverna dessa solidão, onde a gente tartamuteia e não se reconhece na língua vigente. Mas na hora em que uma sílaba se torna som, é o verbo, é o Gênesis. Digo: tenha calma dentro da sua caverna. Segure aí seus pelos arrepiados, porque é assim mesmo. Sua vida pode ser frutífera, solar, alimentadora das gerações que você vai representar e influenciar. Falo, apesar de parecer idiota, porque nunca fiquei na moda, nunca escolhi ser amigo do rei, nem politicamente correto, nem alfabetizado, nem esnobe. Tudo o que faço corre mesmo o perigo da imbecilidade. Aliás, cada passo na arte é sobre o fio da navalha, entre o ridículo e o brilhante (TOM ZÉ, 2017, p. 18).

O acolhimento e a coragem dados por Talitha e Tom Zé, se encontram no escritor James Baldwin. Ele nos trás mais algumas noções sobre como enfrentar esse mundo, ainda de dentro da caverna, mas já com o olhar em direção a saída. Com ele assumo esse risco e saio da caverna com esse texto na mão, para vocês:

Comecei a crer que as pessoas teriam que manter na cabeça, para sempre, duas ideias aparentemente antagônicas. A primeira ideia era a aceitação, a aceitação, totalmente sem rancor, da vida como ela é e dos homens como eles são: à luz dessa ideia, é desnecessário dizer que a injustiça é coisa trivial. Mas isso não queria dizer que se poderia ser complacente, pois a segunda ideia era de igual força: a pessoa nunca deve, em sua própria vida, aceitar essas injustiças como coisas triviais, mas deve lutar contra todas elas com todas as suas forças. Essa luta começa, entretanto, no coração, e agora me fora cometida a tarefa de manter meu próprio coração livre de ódio e desespero (BALDWIN, [1955] 2013, p. 161).

Referências:


ANDRADE, Talitha. Entrevista: Talitha Andrade fala sobre sua arte e vivência como artista urbana e das séries que desenvolve na cidade. In: A Arte na Rua. Disponível em: <http://www.aartenarua.com.br/blog/entrevista-talitha-andrade-fala-sobre-a-sua-vivencia-como-artista-urbana-e-a-cena-em-salvador/>. Publicado em: 11/09/2014. Acesso em: 20/12/2017.

BALDWIN, James. Notas de um filho desta terra. Revista Serrote, n° 15. São Paulo. Instituto Moreira Sales, 2013, p. 131-161.

BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo: o novo e o outro novo. In: BASBAUM, Ricardo (org). Arte contemporânea brasileira: textos, tesituras, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro. Rios Ambiciosos, 2001, p. 202-219.

KEMP, Phillip. Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro. Sextante, 2011.

FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro. Sextante, 2001.

GULLAR, Ferreira. Manifesto Neoconcreto. In: Experiência Neoconcreta. Suplemento Dominical. Jornal do Brasil, ed. n. 66, de 21 e 22/03/1959, p. 4-5. Disponível em:

MACHADO, Antônio Alcântara. Abre-Alas. Revista de Antropofagia. Ano 1, n° 1, maio de 1928. São Paulo, p. 1.

RANCIÈRE, Jacques. Partilha do sensível: a associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière (entrevistas). In: Territórios de Filosofia. Disponível em: <https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2013/04/21/partilha-do-sensivel-a-associacao-entre-arte-e-politica-segundo-o-filosofo-jacques-ranciere/>. Publicado em: 21/04/2013. Acesso em: 18/12/2017.

TOM ZÉ. Catálogo da Exposição: Tom Zé 80. Caixa Cultural. Salvador, 2017.

ZILIO, C. et al. O bom, o pós-bom e o dis-bom. In: BASBAUM, Ricardo (org). Arte contemporânea brasileira: textos, tesituras, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro. Rios Ambiciosos, 2001, p. 179-196.

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